INTRODUÇÃO

Os profissionais da área da saúde que lidam com as questões dos medicamentos – sejam reguladores, gestores, prescritores ou educadores – necessitam quotidianamente fazer tomadas de decisão quanto à eficácia e à segurança dos fármacos de uso corrente. Por eficácia, entende-se o benefício sobre a condição específica que se quer tratar. Segurança é condição indispensável para autorizar o emprego clínico.

Tradicionalmente, tais decisões têm-se baseado em princípios fisiopatogênicos, raciocínio lógico, observação, intuição, sem falar nas pressões exercidas por pacientes, mídia e indústria farmacêutica.

Os profissionais da saúde têm acesso limitado à informação objetiva sobre os fármacos que prescrevem e dispensam1, devendo-se tal fato mais à negligência e à falta de hábito de busca do que à real indisponibilidade da informação.

No Brasil, a fonte de informação medicamentosa corrente e disseminada provém de material elaborado pelos fabricantes dos produtos comercializados. Mesmo informações mais científicas, confiáveis e isentas têm caráter descritivo, sem a preocupação de abordar a investigação comparativa entre diferentes representantes dos variados grupos farmacológicos. Além disso, conservadorismo e comodismo fazem perdurar práticas estabelecidas, mesmo que provem ser ineficazes ou prejudiciais2.

Assim, profissionais da saúde, de uma forma geral, não têm acesso a orientação confiável no tocante ao emprego de medicamentos usuais.

Para reverter tal panorama no país, apresenta-se aqui uma discussão sistemática e abrangente em que se comparam representantes de diferentes grupos farmacológicos de uso corrente, numa óptica farmacológico-clínica, fortemente fundamentada em evidências.

Na busca de evidências orientadoras de condutas, segue-se o paradigma descrito por Sackett3 e conceituado como “o uso consciente, explícito e judicioso da melhor evidência disponível para a tomada de decisão sobre o cuidado de pacientes individuais” 4.

Esse paradigma favorece decisões mais científicas e racionais, baseadas em métodos de avaliação mais vigorosos.

A chamada evidência externa provém da pesquisa clínica sistemática e relevante que, avaliada criticamente, fornece elementos essenciais à tomada de decisão.

É importante hierarquizar os diferentes tipos de estudos farmacológico-clínicos (quadro 1)5,6.

 

Quadro 1. Hierarquização dos estudos primários farmacológico-clínicos

NÍVEIS

CARACTERIZAÇÃO

I

Revisões sistemáticas e metanálises de ensaios clínicos randomizados comparáveis (homogeneidade), com validade interna e mínima possibilidade de erro alfa.

Ensaios clínicos randomizados com desfecho e magnitude de efeito clinicamente relevantes, correspondentes à hipótese principal em teste, com adequado poder e mínima possibilidade de erro alfa.

II

Revisões sistemáticas de estudos de casos e controles e de coortes

Ensaios clínicos randomizados de menor qualidade metodológica

Estudos de intervenção não-randomizados

Coortes e estudos de casos e controles bem conduzidos, com baixo risco de vieses e acaso

III

Estudos não-analíticos: séries e relatos de casos

IV

Opinião de especialistas

 

Estudos observacionais como relatos de casos e séries de casos constituem uma primeira fonte de hipóteses sobre a eficácia dos tratamentos. Porém, apresentam limitações. Não sendo situações controladas, é impossível saber se o sucesso terapêutico atribuído a um dado medicamento proveio, na realidade, de efeito placebo, regressão à média, remissão espontânea ou variabilidade individual de sinais e sintomas. Outros estudos observacionais – estudos de casos e controles, coortes, estudos transversais - têm definida utilidade e pertinência, mas alguns carecem de comparações controladas. Assim, por seu próprio delineamento, têm menor poder metodológico que os estudos farmacológico-clínicos de intervenção.

A maior validade da informação farmacológico-clínica provém de ensaios clínicos randomizados, duplo-cegos, controlados - por placebo, outros fármacos de comprovada eficácia ou nenhum tratamento -, bem delineados para eficazmente testar a hipótese dos autores, com amostras amplas, adequado controle de vieses sistemáticos e erros aleatórios e desfechos cientificamente importantes, geradores de impacto e com conclusões que não extrapolem os resultados obtidos. Para avaliar eficácia e efetividade de condutas, as comparações são imprescindíveis. Um tratamento novo só será considerado eficaz se seus resultados suplantarem os do placebo (que mede a evolução natural do processo que se quer tratar) ou igualarem-se aos de tratamento já existente. Embora esse delineamento vise avaliar eficácia, também aquilata a segurança dos tratamentos, medindo se a ocorrência de efeitos adversos no grupo intervenção difere da apresentada pelo grupo placebo.

Atualmente metanálises e revisões sistemáticas que permitem a análise conjunta de inúmeros ensaios clínicos, coortes com mais de 80% de seguimento e estudos econômicos comparáveis também constituem apoio fidedigno para a tomada de decisão baseada em evidências.

Deve-se atentar para a mudança de desfechos clínicos na década precedente, quando ensaios clínicos passaram a avaliar desfechos de real interesse (redução de morte, doença, desconforto, deficiência funcional, descontentamento e despesa) 7, em vez de desfechos substitutos ou intermediários (variáveis laboratoriais ou clínicas), mais fáceis de aferir, mas incapazes de medir diretamente benefício ou malefício clínicos.

Evidências científicas mostram diferentes graus de certeza, baseados em delineamento e qualidade metodológica dos estudos primários de onde provêm. Esses geram graus de recomendações diversificados, mostrados no Quadro 2.

Nesta abordagem, além do ensaio clínico randomizado – o mais robusto delineamento para avaliar eficácia – são contemplados outros tipos de estudos, aplicáveis em áreas em que aquele não pode ser realizado por questões práticas ou éticas. Na ausência de, pelo menos, recomendação de especialistas reconhecidos (diretrizes), a indicação de tratamento deve ser rotulada como incorreta.

 

Quadro 2. Graus de recomendação de condutas terapêuticas (adaptado da referência8)

GRAUS DE RECOMENDAÇÃO

CARACTERIZAÇÃO

COMENTÁRIOS

A

RS ou metanálise de ECR

ECR individual de nível I

Coorte individual com mais de 80% de seguimento

Seguimento obrigatório, na ausência de contra-indicação do paciente.

B

RS de coortes, estudos de casos e controles e estudos farmacoeconômicos

ECR individual de menor qualidade

Estudo individual de casos e controles bem conduzidos

Pode ser útil. Mas tem menor magnitude de benefício.

C

Série de casos

Fundamenta minimamente condutas.

D

Recomendações de especialistas (diretrizes)

Fundamenta minimamente condutas.

 

A classificação de graus de recomendação não encontra a unanimidade. Por isso, foi omitida no presente trabalho. Ao invés dela, trabalhou-se com uma classificação de evidências adotada pelo Clinical Evidence, publicação do British Medical Journal Publishing Group9. Essa categorização pode ser vista no quadro 3.

 

Quadro 3. Evidências sobre medicamentos de um dado grupo farmacológico em relação a diferentes indicações

 

Benefício definido

Benefício provável

Necessidade de avaliação benefício/ risco

Benefício desconhecido

Sugerida ineficácia ou risco

 

O benefício definido é fundamentado por estudos de nível I. O benefício provável é mostrado por estudos de nível 2. O benefício desconhecido refere-se à inexistência de estudos das categorias anteriores, mesmo que se apresentem estudos de níveis 3 e 4. A necessidade de avaliação benefício/risco depende da evidência de risco que deve ser contrabalançada com o benefício para uma dada situação. Sugerida ineficácia provém de estudos de níveis 1 e 2 que não demonstraram resultados positivos e significativos atribuíveis à intervenção. Sugerido risco é apontado quando estudos de casos e controles ou ensaios clínicos randomizados atribuíram risco à exposição ou à intervenção, respectivamente.

A abordagem foi predominantemente por grupo farmacológico. Em algumas situações específicas, agruparam-se medicamentos segundo uma mesma indicação clínica (ex.: anticonvulsivantes, antiparkinsonianos, fármacos utilizados na reposição hormonal da menopausa etc).

Analisaram-se as reais indicações (critérios de eficácia e efetividade) de diferentes representantes de um grupo farmacológico ou de um fármaco isolado. Mencionaram-se as indicações não suportadas por evidências. Em relação a cada indicação validada, compararam-se os diferentes representantes, selecionando um ou mais medicamentos de referência (critérios de eficácia, segurança, conveniência e custo), ou seja, aquele (s) que apresenta (m) inequívoca vantagem terapêutica. Desses fármacos, fizeram-se monografias em que se descreveram suas características farmacodinâmicas e farmacocinéticas, indicações e contra-indicações, efeitos adversos e interações medicamentosas, modo de uso, precauções de uso, apresentações farmacêuticas disponíveis e aspectos farmacêuticos.

O material da presente publicação foi construído a partir de informações atuais, isentas e cientificamente fidedignas, provenientes de estudos de grande porte e adequada metodologia, nacionais e internacionais. Optou-se pela divulgação sob forma de CD-rom para facilitar subseqüente e sistemática atualização.

A conduta embasada em evidências otimiza benefícios e minimiza riscos e custos, características buscadas no modelo de uso racional de medicamentos. Constitui-se, pois, em estratégia que visa a promoção de tal uso por parte de todos os profissionais da saúde e dos consumidores.

Porém, mais do que isso, deve ser condutora das tomadas de decisão para uma adequada política de saúde no país10, mesmo que se saiba que o método investigacional não permite total acurácia na predição clínica, uma vez que os procedimentos incidem em sistemas biológicos complexos e mutáveis.

As controvérsias que motivam a retomada de condutas de tempos em tempos não devem constituir desestímulo. Na manipulação da “verdade” científica há que ter humildade, não sinônimo de ignorância, fraqueza ou falha, mas fruto da mutabilidade do saber e da ciência11.

Por isso todo o empenho deve ser voltado para selecionar a melhor medida disponível capaz de melhorar o nível de saúde individual e coletivo, disponibilizando condições que permitam sua incorporação à prática diária.

Referências bibliográficas

1. Fefer E. Uso racional de medicamentos. In: Bermudez JAZ, Bonfim JRA (org.). Medicamentos e a reforma do setor saúde. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 35-43.

2. Martensen RL. The effect of medical conservatism on the acceptance of important medical discoveries. JAMA 1996; 276: 1933.

3. Sackett DL, Strauss SE, Richardson WS, Rosenberg W, Haynes RB. Evidence-based medicine. How to practice and teach EBM. New York: Churchill-Livingstone, 2000. 250 p.

4. Sackett DL. Evidence-based medicine. Semin Perinatol 1997; 21: 3-5.

5. Greenhalgh T. Getting your bearings (deciding what the paper is about). BMJ 1997; 315: 243-46.

6. Harbour R, Miller J. A new system for grading recommendations in evidence based guidelines. BMJ 2001; 323: 334-36.

7. Fletcher RH, Fletcher SW, Wagner EH. Epidemiologia clínica. 3 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 11-28.

8. Ball C, Sackett D, Phillips B, Haynes B, Straus S. Levels of Evidence and Grades of Recommendations. NHS R&D Centre for Evidence-Based Medicine. Revision on18th November 1999.

9. American College of Physicians. Clinical evidence. Issues 1,2,3,4. BMJ Publishing Group, 2001. Disponível em: <http://www.evidence.org>

10. Anonymous. The agonies of evidence. BMJ 2001; 323: 0.

11. Logan RL, Scott PJ. Uncertainty in clinical practice: implications for quality and costs of health care. Lancet 1996; 347: 595-98.