FUNDAMENTOS FARMACOLÓGICO-CLÍNICOS
DOS MEDICAMENTOS
DE USO CORRENTE
Setembro de 2002
Nota
Este
documento foi elaborado pelo Grupo de Trabalho instituído na Fundação Oswaldo
Cruz (Núcleo de Assistência Farmacêutica, Escola Nacional de Saúde Pública,
Centro Colaborador da OPAS/OMS em Políticas Farmacêuticas) para executar as
atividades previstas no Ajuste de Cooperação Técnico-Científica e Convênio com
a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária/
Ministério da Saúde (N0 023/2000)
As opiniões expressas neste trabalho são de responsabilidade dos autores e não refletem
necessariamente a posição do Ministério da Saúde sobre o assunto.
Catalogação na fonte
Centro de Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca Lincoln de Freitas Filho
|
Os profissionais da área da saúde que
lidam com as questões dos medicamentos – sejam reguladores, gestores,
prescritores ou educadores – necessitam quotidianamente fazer tomadas de
decisão quanto à eficácia e à segurança dos fármacos de uso corrente. Por
eficácia, entende-se o benefício sobre a condição específica que se quer
tratar. Segurança é condição indispensável para autorizar o emprego clínico.
Tradicionalmente,
tais decisões têm-se baseado em princípios fisiopatogênicos, raciocínio lógico,
observação, intuição, sem falar nas pressões exercidas por pacientes, mídia e
indústria farmacêutica.
Os
profissionais da saúde têm acesso limitado à informação objetiva sobre os
fármacos que prescrevem e dispensam1(FEFER), devendo-se tal fato
mais à negligência e à falta de hábito de busca do que à real indisponibilidade
da informação.
No
Brasil, a fonte de informação medicamentosa corrente e disseminada provém de
material elaborado pelos fabricantes dos produtos comercializados. Mesmo
informações mais científicas, confiáveis e isentas têm caráter descritivo, sem
a preocupação de abordar a investigação comparativa entre diferentes
representantes dos variados grupos farmacológicos. Além disso, conservadorismo
e comodismo fazem perdurar práticas estabelecidas, mesmo que provem ser ineficazes ou prejudiciais2 (Martensen).
Assim,
profissionais da saúde, de uma forma geral, não têm acesso a
orientação confiável no tocante ao emprego de medicamentos usuais.
Para
reverter tal panorama no país, apresenta-se aqui uma discussão sistemática e
abrangente em que se comparam representantes de diferentes grupos farmacológicos
de uso corrente, numa óptica farmacológico-clínica,
fortemente fundamentada em evidências.
Na busca
de evidências orientadoras de condutas, segue-se o paradigma descrito
por Sackett3 (Sackett) e conceituado como “o uso consciente,
explícito e judicioso da melhor evidência disponível para a tomada de decisão
sobre o cuidado [LW1]de pacientes individuais” 4(Sackett).
Esse
paradigma favorece decisões mais científicas e racionais, baseadas em métodos
de avaliação mais vigorosos.
A chamada
evidência externa provém da
pesquisa clínica sistemática e relevante que, avaliada criticamente, fornece
elementos essenciais à tomada de decisão.
É
importante hierarquizar os diferentes tipos de estudos farmacológico-clínicos
(quadro 1)5,6 (Greenhalgh, Harbour).
Quadro 1. Hierarquização dos estudos
primários farmacológico-clínicos
NÍVEIS |
CARACTERIZAÇÃO |
I |
Revisões
sistemáticas e metanálises de ensaios clínicos randomizados comparáveis
(homogeneidade), com validade interna e mínima possibilidade de erro alfa. Ensaios
clínicos randomizados com desfecho e magnitude de efeito clinicamente
relevantes, correspondentes à hipótese principal em teste, com adequado poder
e mínima possibilidade de erro alfa. |
II |
Revisões
sistemáticas de estudos de casos e controles e de coortes Ensaios
clínicos randomizados de menor qualidade metodológica Estudos
de intervenção não-randomizados Coortes
e estudos de casos e controles bem conduzidos, com baixo risco de vieses e acaso |
III |
Estudos
não-analíticos: séries e relatos de casos |
IV |
Opinião de especialistas |
Estudos
observacionais como relatos de casos e séries de casos constituem uma primeira
fonte de hipóteses sobre a eficácia dos tratamentos. Porém, apresentam limitações.
Não sendo situações controladas, é impossível saber se o sucesso terapêutico
atribuído a um dado medicamento proveio, na realidade, de efeito placebo,
regressão à média, remissão espontânea ou variabilidade individual de sinais e
sintomas. Outros estudos observacionais – estudos de casos e controles,
coortes, estudos transversais - têm definida utilidade e pertinência, mas
alguns carecem de comparações controladas. Assim, por seu próprio delineamento,
têm menor poder metodológico que os estudos farmacológico-clínicos de
intervenção.
A maior
validade da informação farmacológico-clínica provém de
ensaios clínicos randomizados, duplo-cegos, controlados - por placebo, outros
fármacos de comprovada eficácia ou nenhum tratamento -, bem delineados para eficazmente
testar a hipótese dos autores, com amostras amplas, adequado controle de vieses
sistemáticos e erros aleatórios e desfechos cientificamente importantes,
geradores de impacto e com conclusões que não extrapolem os resultados obtidos.
Para avaliar eficácia e efetividade de condutas, as comparações são
imprescindíveis. Um tratamento novo só será considerado eficaz se seus
resultados suplantarem os do placebo (que mede a evolução natural do processo
que se quer tratar) ou igualarem-se aos de tratamento já existente. Embora esse
delineamento vise avaliar eficácia, também aquilata a segurança dos
tratamentos, medindo se a ocorrência de efeitos adversos no grupo intervenção
difere da apresentada pelo grupo placebo.
Atualmente
metanálises e revisões sistemáticas que permitem a análise conjunta de inúmeros
ensaios clínicos, coortes com mais de 80% de seguimento e estudos econômicos
comparáveis também constituem apoio fidedigno para a tomada de decisão baseada
em evidências.
Deve-se
atentar para a mudança de desfechos clínicos na década precedente, quando
ensaios clínicos passaram a avaliar desfechos de real
interesse (redução de morte, doença, desconforto, deficiência funcional,
descontentamento e despesa) 7 (Fletcher), em vez de desfechos substitutos ou intermediários
(variáveis laboratoriais ou clínicas), mais fáceis de aferir, mas
incapazes de medir diretamente benefício ou malefício clínicos.
Evidências
científicas mostram diferentes graus de certeza, baseados em delineamento e
qualidade metodológica dos estudos primários de onde provêm. Esses geram graus
de recomendações diversificados, mostrados no Quadro 2.
Nesta
abordagem, além do ensaio clínico randomizado – o mais robusto delineamento
para avaliar eficácia – são contemplados outros tipos de estudos, aplicáveis em
áreas em que aquele não pode ser realizado por questões práticas ou éticas. Na
ausência de, pelo menos, recomendação de especialistas reconhecidos
(diretrizes), a indicação de tratamento deve ser rotulada como incorreta.
Quadro 2. Graus de recomendação de
condutas terapêuticas (adaptado da referência8)
GRAUS DE RECOMENDAÇÃO |
CARACTERIZAÇÃO |
COMENTÁRIOS |
A |
RS ou
metanálise de ECR ECR
individual de nível I Coorte
individual com mais de 80% de seguimento |
Seguimento
obrigatório, na ausência de contra-indicação do paciente. |
B |
RS de
coortes, estudos de casos e controles e estudos farmacoeconômicos ECR
individual de menor qualidade Estudo
individual de casos e controles bem conduzidos |
Pode
ser útil. Mas tem menor magnitude de benefício. |
C |
Série de casos |
Fundamenta minimamente condutas. |
D |
Recomendações de especialistas (diretrizes) |
Fundamenta minimamente condutas. |
A
classificação de graus de recomendação não encontra a unanimidade. Por isso,
foi omitida no presente trabalho. Ao invés dela, trabalhou-se com uma
classificação de evidências adotada pelo Clinical Evidence, publicação
do British Medical Journal Publishing Group9. Essa categorização pode ser vista no
quadro 3.
Quadro 3. Evidências sobre
medicamentos de um dado grupo farmacológico em relação a diferentes indicações
Benefício definido Benefício provável Necessidade de avaliação benefício/ risco Benefício desconhecido Sugerida ineficácia ou risco |
O
benefício definido é fundamentado por estudos de nível I. O benefício provável
é mostrado por estudos de nível 2. O benefício desconhecido refere-se à
inexistência de estudos das categorias anteriores, mesmo que se apresentem
estudos de níveis 3 e 4. A necessidade de avaliação benefício/risco depende da
evidência de risco que deve ser contrabalançada com o benefício para uma dada
situação. Sugerida ineficácia provém de estudos de níveis 1 e 2 que não
demonstraram resultados positivos e significativos atribuíveis à intervenção. Sugerido
risco é apontado quando estudos de casos e controles ou ensaios clínicos
randomizados atribuíram risco à exposição ou à intervenção, respectivamente.
A
abordagem foi predominantemente por grupo farmacológico. Em algumas situações
específicas, agruparam-se medicamentos segundo uma mesma indicação clínica (ex.: anticonvulsivantes, antiparkinsonianos, fármacos
utilizados na reposição hormonal da menopausa etc).
Analisaram-se
as reais indicações (critérios de eficácia e efetividade) de diferentes representantes
de um grupo farmacológico ou de um fármaco isolado. Mencionaram-se as
indicações não suportadas por evidências. Em relação a cada indicação validada,
compararam-se os diferentes representantes, selecionando um ou mais
medicamentos de referência (critérios de eficácia, segurança, conveniência e
custo), ou seja, aquele (s) que apresenta (m) inequívoca vantagem terapêutica.
Desses fármacos, fizeram-se monografias em que se descreveram suas
características farmacodinâmicas e farmacocinéticas, indicações e
contra-indicações, efeitos adversos e interações medicamentosas, modo de uso,
precauções de uso, apresentações farmacêuticas disponíveis e aspectos
farmacêuticos.
O
material da presente publicação foi construído a partir de informações atuais,
isentas e cientificamente fidedignas, provenientes de estudos de grande porte e
adequada metodologia, nacionais e internacionais. Optou-se pela
divulgação sob forma de CD-rom para facilitar
subseqüente e sistemática atualização.
A conduta
embasada em evidências otimiza benefícios e minimiza riscos e custos,
características buscadas no modelo de uso racional de medicamentos.
Constitui-se, pois, em estratégia que visa a promoção
de tal uso por parte de todos os profissionais da saúde e dos consumidores.
Porém,
mais do que isso, deve ser condutora das tomadas de
decisão para uma adequada política de saúde no país10 (BMJ 2001),
mesmo que se saiba que o método investigacional não permite total acurácia na
predição clínica, uma vez que os procedimentos incidem em sistemas biológicos
complexos e mutáveis.
As
controvérsias que motivam a retomada de condutas de tempos em tempos não devem
constituir desestímulo. Na manipulação da “verdade” científica há que ter
humildade, não sinônimo de ignorância, fraqueza ou falha, mas fruto da
mutabilidade do saber e da ciência11 (Logan).
Por isso
todo o empenho deve ser voltado para selecionar a melhor medida disponível
capaz de melhorar o nível de saúde individual e coletivo, disponibilizando
condições que permitam sua incorporação à prática diária.
Créditos:
Coordenador:
Prof. Jorge A. Z. Bermudez
Médico, Mestre em
Medicina, Doutor em Saúde Pública, Coordenador do Núcleo de Assistência
Farmacêutica – ENSP/FIOCRUZ
Coordenador Científico:
Lenita
Wannmacher
Médica, Mestre em Medicina, pela UFRGS, Professora de Farmacologia da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade de Passo Fundo, RS
Coordenador Adjunto:
Maria
Auxiliadora Oliveira
Médica, Mestre em Medicina, Doutora em Inovação Tecnológica e
Organização Industrial – COPPE / UFRJ, Coordenadora Adjunta do Núcleo de
Assistência Farmacêutica – ENSP/FIOCRUZ
Marly
Aparecida Elias Cosendey
Farmacêutica, Mestre em Farmácia Hospitalar, Doutora em Saúde Pública –
ENSP/FIOCRUZ, Pesquisadora do Núcleo de Assistência Farmacêutica –
ENSP/FIOCRUZ, Farmacêutica do Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ
Colaboração
Vera Lúcia
Luiza
Farmacêutica, Mestre em Farmácia Hospitalar, Doutoranda em Saúde Pública
–ENSP/FIOCRUZ, Pesquisadora do Núcleo de Assistência Farmacêutica –
ENSP/FIOCRUZ e do Instituto de Pesquisa Evandro Chagas/FIOCRUZ.
Equipe Técnica:
Médico, Mestre em Medicina Interna (Hepatologia) –
Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas e Irmandade da Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre, Professor Adjunto da Disciplina de
Gastroenterologia da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre
Farmacêutica, aluna do curso de
Especializaçao em Farmacia Hospitalar nos moldes de residência pela UFF/MS.
Farmacêutica do Núcleo de Assistência Farmacêutica – ENSP/FIOCRUZ
Farmacêutica do Hospital Universitário Pedro Ernesto
Médico, Especialista em Medicina Interna – Hospital da
Santa Casa de Porto Alegre, Mestrando em Cardiologia – UFRGS
Farmacêutica
Médica, Doutorado em Medicina (Cardiologia) – UFRGS /
Sanduíche Harvard Medical School, Assessora da Vice-Presidência Médica e no
Serviço de Cardiologia do Hospital das Clínicas de Porto Alegre
Farmacêutica, Especialista em Farmácia Hospitalar – UFPR, Mestranda em
Medicina - Clínica Médica – UFRGS, Professora das Disciplinas de Farmácia
Hospitalar e Farmacoterapêutica da URI - Campus Erechim
Farmacêutica, Especialização em Farmácia
Hospitalar – UFF/MS
Farmacêutica, Mestre em Farmácia Hospitalar – UFRJ, Doutora em Saúde da
Mulher e da Criança, Pesquisadora do Instituto Fernandes Figueira/FIOCRUZ e do
Núcleo de Assistência Farmacêutica – ENSP/FIOCRUZ
Médica, Mestre em Pediatria, Doutora em Pediatria – UFRGS, Professora
assistente de Pediatria da FAMED/UFRGS
Farmacêutica, Chefe do Instituto de
Psiquiatria da UFRJ – IPUB
Médico, Especialização (Residência) em
Neurologia – University of Miami School of Medicine, Eletroneuromiografista e
neurologista na Irmandade santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
Farmacêutico do Núcleo de Assistência Farmacêutica – ENSP/FIOCRUZ
Médica, Mestre em Medicina (Clínica Médica),
Doutoranda em Medicina (Clínica Médica) – UFRGS, Preceptora da Residência
Médica em Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Materno-Infantil Presidente
Vargas, Porto Alegre
Médico, Mestre em Medicina (Clínica Médica), Doutor em
Medicina (Clínica Médica) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Médica, Mestre em Medicina (Clínica Médica), Doutora
em Medicina (Clínica Médica) – Faculdade de Medicina da UFRGS, Professora
Adjunta do Departamento de Farmacologia, do Instituto de Ciências Básicas da
Saúde da UFRGS
Médico, Mestre em Medicina (Cardiologia), Doutor em Medicina
(Cardiologia) – UFRGS, Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Médica, Mestre em Ciências Biológicas (com ênfase em
Fisiologia), Doutora em Ciências Biológicas (com ênfase em Fisiologia) – UFRGS,
Professora Adjunta do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências
Básicas da Saúde da Universidade
Farmacêutica da Vigilância Sanitária do Município do Rio de Janeiro e do
CEATRIM/UFF-CRF-RJ, aluna do curso de Especializaçao em Farmacia Hospitalar nos
moldes de residência pela UFF/MS
Farmacêutico, Mestre em Farmácia Hospitalar, Professor e Coordenador do
Curso de Farmácia da UNIVIX
Médico, Mestre em Epidemiologia, Doutorando em Epidemiologia –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Médico da Assessoria de Planejamento
e Avaliação do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Médico, Mestre em Cirurgia Geral – Faculdade de
Medicina, UFRGS, professor assistente do Departamento de Farmacologia do
Instituto de Ciências Básicas da Saúde- UFRGS
Farmacêutica, Mestre em Engenharia Biomédica, Doutora em Engenharia
Biomédica – Coppe/URFJ, Coordenadora CEATRIM/UFF-CRF-RJ
Farmacêutica do Hospital Universitário Pedro Ernesto – UERJ
Farmacêutica Industrial, mestranda em Saúde Coletiva / Epidemiologia
Geral - ENSP/FIOCRUZ
Farmacêutica
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