Sobre sushi de
salmão, caixa d’água destampada e a fábula do carneirinho que
falava do lobo
Nos últimos dias
veio ao conhecimento público a ocorrência de casos de
difilobotríase na cidade de São Paulo. Trata-se de uma série de
27 casos de uma parasitose intestinal (verminose) sem descrição
anterior no Brasil, portanto podemos defini-la tecnicamente como
um surto de uma doença emergente. Durante a investigação, aliás,
muito bem conduzida por parte do Centro de Vigilância
Epidemiológica de São Paulo (CVE), constatou-se que
provavelmente a fonte desta infecção era o salmão importado
fresco do Chile, onde esta doença é endêmica. Esta investigação
chegou até a identificar quais eram os poucos fornecedores
chilenos responsáveis pelos casos ocorridos. O CVE repassou
estas informações à Secretaria de Vigilância em Saúde do
Ministério da Saúde (SVS) e publicou estas informações em seu
boletim técnico chamado BEPA no dia 15 do mesmo mês. No dia 5 de
abril estes fatos acabaram saindo em uma reportagem em um jornal
televisivo de uma emissora com grande cobertura. No dia seguinte
os jornais impressos repercutiram o fato e assombraram a
população com “a tênia do peixe”. Para não ficar atrás, outras
emissoras também divulgaram o ocorrido destacando o perigo de
adquirir o verme de 10 metros, ao qual os comedores de peixes
crus estavam se expondo. Na noite deste 6 de abril a Voz do
Brasil afirmou que estávamos sob risco de ter uma “nova doença”
em nosso país e que o governo estava tomando providências
urgentes para evitar isto. Assim, no dia 7 de abril a ANVISA, o
SVS e o Ministério da Agricultura emitiram um comunicado para
salvar nosso povo. Neste comunicado havia a preocupação em
evitar que as pessoas adquirissem a doença, os que tivessem
adquirido pudessem ser tratados adequademente e impedir que mais
esta praga fosse introduzida em nosso pobre país para sempre. A
Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo não ficou atrás e
emitiu um comunicado conjunto entre o Centro de Vigilância
Sanitária e o CVE com as mesmas recomendações e, através da
Divisão de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar, criou um
site com as informações sobre a difilobotríase. Os órgãos
governamentais de saúde afirmaram que corríamos o risco de nos
tornar um país com transmissão endêmica desta doença se medidas
urgentes e profundas não fossem tomadas. Entre as medidas
orientadas pelos órgãos de saúde estavam não comer mais peixe
cru e para aqueles piscívoros incontroláveis que insistissem em
comer peixes crus, estes deveriam congelar o peixe por sete dias
a uma temperatura de –20°C, ou 24 horas a –35°C. Devemos lembrar
que os frízeres utilizados em restaurantes e residências só
atingem seguramente –18°C. Meu cunhado, ao saber que a saúde sua
família corria risco de ter um monstro alienígena na barriga,
proibiu, com certo orgulho, a entrada de salmão em sua casa e
orientou que minha irmã parasse com seu hábito medonho de comer
iguarias japonesas cruas. Os sushimen de todo Brasil saíram em
defesa de seus queridos e higiênicos salmões, em Campinas um
restaurante chegou a colocar um freezer à vista do público para
provar que o seu salmão era agressivamente congelado e livre
daquela maldição do pacífico. Outros apresentaram documentos
emitidos pelos fornecedores de que seus saborosos salmões eram
cultivados em condições de higiene excelente e não eram
portadores do tal verme, todos procurando se defender das
acusações de que eram responsáveis por mais uma desgraça
nacional. Um conhecido meu, achando normal toda esta
movimentação em torno deste verme do peixe, me perguntou
assustado: a tênia não é aquele verme que pode ir para o
cérebro? Opa! Para, para, para. Vamos começar tudo de novo.
A difilobotríase é
uma doença causada pelo verme chamado Diphyllobothrium spp
parasita humano da classe dos cestódios (do grego kestos, ‘fita’
e eidos, ‘semelhante’). O representante mais ilustre desta
classe de vermes é a Taenia solium, a popular solitária,
causadora da teníase e da cisticercose. Esta sim pode causar
complicações neurológicas graves e hoje, graças a inúmeras
medidas sanitárias, já não é muito comum no Brasil, mas ainda é
um problema de saúde relevante. A difilobotríase é uma doença em
geral assintomática, ou com sintomas como dor abdominal,
diarréia, emagrecimento, como a maioria dos vermes mais comuns.
A anemia é a complicação mais grave e tardia desta doença e só
ocorre em 2% dos pacientes portadores. Ela não mata nem causa
problemas neurológicos. O tratamento é com uma dose única de
praziquantel, medicamento à disposição em farmácias e nos centro
de saúde de todo Brasil gratuitamente. O homem é um dos
hospedeiros definitivos deste verme que também pode se hospedar
em cães, gatos e ursos, que são importantes agentes na
epidemiologia desta doença. Estes hospedeiros eliminam ovos do
verme que são comidos por microcruastáceos estes são comidos por
pequenos peixes que desenvolvem uma larva, estes pequenos peixes
são comidos por peixes maiores, em geral salmão ou trutas. Estes
últimos peixes quando comidos por mamíferos desenvolverão no
intestino o verme adulto. Esta doença ocorre em vários países de
clima frio como Canadá, Rússia, EUA, Comunidade Européia, Coréia
e Chile. Pode haver maior ocorrência em volta de certos lagos e
rios onde se concentram populações que tem hábito de comer
peixes crus ou defumados. No Chile a população tem por hábito
comer peixe cru num prato chamado Ceviche. Numa cidade litorânea
chilena chamada Valdivia pesquisadores encontraram 0,4% da
população como portadora deste verme. Na mesma localidade estes
pesquisadores encontraram uma ocorrência de 32% de Trichuris
trichiura e de 12,7% de Ascaris lumbricoides, vermes
transmitidos de pessoa para pessoa através das fezes. As medidas
para inativar de parasitas de peixe, que são vários, variam de
país para país. No Chile recomenda-se o congelamento a -18°C por
24 horas ou a -10°C por 72 horas, na Comunidade Européia a -20º
C por pelo menos 24 horas. Já nos EUA a orientação do FDA é
congelamento do peixe por sete dias a uma temperatura de –20°C,
ou 24 horas a –35°C . Embora alguns pesquisadores afirmem que
especificamente para inativar o Diphyllobothrium spp bastaria
congelamento a menos -10°C por 15 minutos.
Por tudo isto
podemos afirmar que o que aconteceu semana passada foi uma
grande seqüência de exageros ora por parte da imprensa, ora por
parte dos próprios órgãos oficiais, num ciclo vicioso de
histeria coletiva que parecia não ter mais fim. O grande erro
inicial foi a avaliação de que haver um surto de uma doença nova
significa necessariamente tratar se de um problema sério do
ponto de vista da saúde coletiva e individual. Temos que ter
mais clareza de qual é o tamanho do problema de fato. Esta
doença é muito branda e rara mesmo nos países onde elas ocorrem
há séculos. Mesmo no Chile, onde está provavelmente a fonte de
nossos casos, esta doença não é uma das parasitoses mais
importantes, por ser pouco freqüente e menos grave que outras
parasitoses encontradas lá. Temos que lembrar que a prevalência
de Ascaris (lombriga) entre as crianças de escolas de Campinas
chega a 42% (isto mesmo, 42% em Campinas). Além disto, me parece
que o risco de haver transmissão deste verme no Brasil é
pequeno, pois este parasita tem um ciclo complexo que depende de
várias espécies de animais (homem, microcrustáceo, peixe
pequeno, peixe grande) e hoje em dia só há transmissão deste
parasita em áreas de clima frio. No Brasil o hábito de comer
peixe cru se restringe às classes mais abastadas das grandes
metrópoles o que dificultaria a manutenção do ciclo uma vez que
exige que os portadores da doença evacuem próximos aos
criadouros de peixe. Por tudo isto a medida mais adequada seria
que os órgãos oficiais brasileiros de saúde e comércio exterior
de pescado solicitassem explicações e medidas de controle por
parte das autoridades e dos fornecedores chilenos. Caso as
medidas anunciadas pelos chilenos fossem insatisfatórias, outras
providências poderiam ser tomadas, tudo com a tranqüilidade e
segurança. Ao cair na mídia o adequado seria orientar sobre a
ausência de risco à vida das pessoas e não vir com medidas
heróicas e fórmulas mágicas importadas de outros países com
condições sanitárias totalmente diferentes das nossas.
Casos como este
são contraproducentes do ponto de vista da educação sanitária,
levando mais confusão à cabeça das pessoas. A carne de peixe
crua por ser trabalhada manualmente e não se submeter a altas
temperaturas, que matam os germes, pode transmitir muitas outras
doenças até mais sérias que esta e já presentes no Brasil
(salmonela, ameba, giárdia, outras parasitoses até mais graves e
comuns, diarréias agudas, viroses...). Para se evitar esta série
de doenças as medidas de controle são simples, eficazes e estão
relacionadas aos hábitos de higiene dos manipuladores dos
alimentos e das condições sanitárias do estabelecimento. Ou
seja, muito mais importante que congelar o salmão por 7 dias a
–20ºC ou por 24 horas a –35ºC, é o sushimen cortar a unha, lavar
bem a mão, usar como apoio material sintético não poroso ao
invés de tábua carne e aquelas madeirinhas que envolvem o sushi
na hora de cortar além de manter a cozinha limpa. Com estas
medidas facilmente aplicáveis estaremos evitando com eficiência
a transmissão de doenças muito mais graves e comuns que esta tal
difilobotríase. Quando uma autoridade sanitária faz afirmações
ou orientações, isto mexe com a vida das pessoas, afinal estamos
tratando do maior bem que possuímos, nossa saúde. Quando se
afirma que de um surto de uma doença nova precisamos ter em
mente o imaginário da população. Esta se sente totalmente
vulnerável diante do desconhecido e faz suas livres associações
(dengue, AIDS, ebola, doença da vaca louca...). O
Diphyllobothrium spp é realmente o maior verme capaz de
parasitar o ser humano chegando até 12 metros (do tamanho de uma
sucuri, isto mesmo). A questão que tem que ficar claro é que o
tamanho do parasita não tem nada haver com o problema que ele
causa. Lembremos que a AIDS e a Doença da Vaca Louca, são
mortais, incuráveis e causadas respectivamente por vírus e
prions que são as menores partículas infectantes existentes.
Quando se faz analogia com a tênia está certo do ponto de vista
biológico, mas é natural que a população se lembre dos quadros
neurológicos do cisticercose que todos aprendem na escola que
pode até matar.
Com o aumento do
comércio e das viagens internacionais estamos sim sob o risco de
introdução ou reintrodução doenças perigosas no Brasil.
Portanto, ao fazer qualquer afirmação, os órgãos de imprensa e
saúde tem que ter muito cuidado. Quando a população reage com
natural preocupação o melhor é explicar adequadamente sobre o
risco de fato, não tomar atitudes intempestivas e heróicas sem
nenhuma aplicabilidade ou eficácia. Após semanas a poeira
abaixará, se perceberá que a dimensão do problema é pequena,
abrandarão-se as medidas sanitárias de controle que de nada
funcionam, o caso será publicado num congresso e numa revista
científica internacional, os estagiários dos orgão de saúde
pública escreverão trabalhos de enceramento de estágio, os
pós-graduandos defenderão teses e acabará tudo. Não, não acaba
tudo, as imagens ficam gravadas. Algo semelhante ocorreu com o
caramujo africano gigante. O problema destas idas e vindas dos
órgãos de saúde pública é que há risco de um clima de
insegurança numa minoria de pessoas mais preocupadas. Na
população geral o que acaba acontecendo é que passam a ver os
órgãos de saúde pública com desconfiança e achando que estes
órgãos sempre exageram. Bom, depois quero ver quem vai conseguir
convencer esta população calejada a usar camisinha para evitar
AIDS ou a tampar a caixa d’água e por areia nos vasos de plantas
para evitar a dengue? A dengue clássica é uma doença com
capacidade de causar grandes epidemias e as pessoas que
desenvolvem a dengue ficam extremante debilitadas, causando
sobrecarga nos serviços de saúde e sofrimento aos pacientes.
Além disto, existe a forma hemorrágica que pode matar e não
possui tratamento específico, só de suporte. O problema é que a
melhor medida de controle é cada um cuidar do seu quintal por
que o Aedes aegypti, seu transmissor, tem nos domicílios sua
área de procriação predileta, diferente de outros mosquitos que
se reproduzem em brejos. Para controlar a dengue temos que ter a
população como parceira e parceria exige confiança.
Com tudo isto eu
me lembrei daquela fábula do carneirinho chamava o pastor para
salvá-lo do lobo e quando o pastor ia ver, era brincadeira.
Depois de várias vezes cair nesta mesma brincadeira, o pastor
ficou preparado para mais uma destas. Foi quando veio um lobo de
fato. O carneirinho gritou para ser salvo e o pastor achou que
fosse mais uma de suas brincadeiras e não foi defendê-lo, aí
você já imagina o final.
André Ricardo
Ribas de Freitas, 34 anos, médico sanitarista.
arrfreitas@ig.com.br