Plenária Municipal de Saúde

1. A Saúde para a Campinas que queremos

A construção de uma política de saúde, não só em Campinas, mas em todo o país tem que se pautar pela lógica que saúde não é um bem sujeito às leis de mercado e, portanto, não é um bem de consumo.  Está inscrita na Constituição como direito de cidadania e dever do estado, conquista inalienável de anos de lutas dos movimentos democráticos da sociedade brasileira. Baseia-se num conceito de saúde fruto da sociabilidade, da afetividade, da subjetividade, da organização da vida cotidiana, das relações com o território e com o meio ambiente (da experiência social, individualizado em cada sentir e vivenciado num corpo que também é biológico). Portanto, não se restringe à assistência médica, mas à garantia de acesso a moradia, trabalho, lazer, salários dignos, cultura, enfim, à solidariedade social que garantam condições dignas de vida a sujeitos plenos de direitos.

São indiscutíveis os avanços do SUS em todo o país ao longo dos últimos anos. É crescente o grau de universalização do acesso desde o mais simples procedimento até o atendimento mais complexo. Mais de 90% dos transplantes de órgãos, da urgência e emergência e dos procedimentos de alto custo são realizados pelo SUS. É a política pública de saúde que garante uma cobertura vacinal capaz de controlar todas as doenças infecciosas imunopreveníveis, a ponto de ter eliminado do nosso território doenças como a poliomielite e a difteria. O nosso programa de combate a AIDS é exemplo para todo o mundo. É cada vez mais consistente a política nacional de luta antimanicomial, cuidando do paciente em sofrimento mental em liberdade, no território, no seio da família, onde a vida acontece.

Em Campinas, os progressos foram ainda mais significativos. A ampliação do acesso a serviços de saúde e de educação básica, a oferta de água potável a mais de 98% da população e rede de esgoto a mais de 90%, dentre outros determinantes, permitiram, ainda que de maneira desigual entre os vários estratos econômicos e regiões da cidade, uma mudança significativa do perfil de morbi-mortalidade. Controlaram-se as doenças imunopreveníveis, inclusive com a erradicação da varíola e poliomielite; controlou-se a raiva animal e humana (há mais de 20 não se registra nenhum caso em Campinas) bem como o tétano e o sarampo; reduziu-se substancialmente o índice de desnutrição infantil bem como a mortalidade infantil (caiu de 35, 64 em 1980 para 11,8 em 2002, queda de 66%); aumentou-se a esperança de vida ao nascer de 64 anos em 1980 para 72 anos em 2002 (aumento de 12 anos).

Contudo muito ainda há que se avançar na construção do SUS em nosso município.  Há ainda dificuldade de acesso a serviços de saúde em algumas áreas da cidade, bem como para algumas especialidades.  Há, ainda, muita insatisfação com a assistência médica, com as filas e demoras para acessar os ambulatórios de especialidade.

Afora estas questões relativas a infra-estruturas do Sistema Municipal de Saúde, três grupos de problemas devem ser olhados com muita atenção.

O primeiro diz respeito ao esgotamento do paradigma biopsicomédico – saúde não mais entendida como ausência de doença, mas resultante de múltiplos determinantes, incluindo o biológico, o cultural, o social, o meio ambiente, as relações de classe. Destaca-se aqui, particularmente nos últimos 15 anos, um esgotamento do crescimento econômico do país e que se reflete no nosso município, que trouxe como conseqüências desigualdades sociais, o desemprego estrutural, o aumento da concentração de renda e o ainda pequeno investimento em políticas sociais.

O segundo relaciona-se à mudança do perfil demográfico das últimas décadas:

Suas principais características foram uma taxa de urbanização superior a 95% e a grande velocidade de crescimento da cidade de maneira desordenada, principalmente nos anos 70 e 80 seguida por uma drástica diminuição da velocidade de crescimento da década de 90 (embora em 97 tenha-se assistido o crescimento de algumas áreas da cidade através de ocupações). Como conseqüência incharam-se as periferias da cidade com o surgimento de um sem número de favelas e ocupações de terras públicas com infra-estrutura inadequada ou inexistente e sem serviços públicos ou ainda insuficientes para garantir acesso às políticas sociais. Já nos últimos 10 anos, como conseqüência da diminuição da fertilidade das mulheres e da redução da taxa de imigração para o município, assiste-se a uma diminuição notável do crescimento da cidade e o envelhecimento da sua população (a população acima de 60 anos já é em torno de 10% da população da cidade), o que traz várias conseqüências para a saúde das pessoas. Outro fator que interfere nos padrões de saúde refere-se à deterioração do meio ambiente, provocada pelo aumento de indústrias poluentes, aumento da frota de veículos automotores, falta de tratamento dos esgotos lançados in natura nos rios, aumento da produção do lixo, particularmente de produtos não degradáveis, etc.

O terceiro grupo de questões refere-se ao distanciamento dos usuários e dos profissionais e dos serviços de saúde, da falta de interesse e de responsabilização em torno de si e do seu problema. Cuidam da doença ou do corpo doente e não das pessoas e o seu contexto social ou cultural – queixa que aparece tanto em países como o Brasil que gasta em torno de R$ 300,00/ capita/ano quanto em países como os EUA que gasta 3 mil dólares/capita/ano (1 trilhão de dólares/ano).

A somatória destes grupos de problemas traz como resultante uma mudança importante no perfil de morbi-mortalidade não só em Campinas, mas no Brasil, que os especialistas chamam de transição epidemiológica: reduz-se substantivamente a morbidade e a mortalidade por doenças infecto-contagiosas (sem, contudo, o controle total e ainda o ressurgimento de velhos males como leishmaniose, esquistossomose, dengue, aliados ao surgimento de novas patologias como a Aids) e aumenta-se gradativamente as doenças crônico-degenerativas.

Assim, como efeito paradoxal da maior facilidade de acesso a vários tipos de alimentos, da industrialização, da urbanização, do acesso a tecnologias médicas cada vez mais sofisticadas, que foram capazes de produzir mudanças qualitativas na saúde das pessoas e de prolongar-lhes a vida, assistimos ao surgimento ou aumento de várias doenças crônicas: obesidade, hipertensão arterial, diabetes, doenças reumáticas, etc. A “vida moderna” e as questões sociais traz como conseqüência a violência urbana, o alcoolismo, as doenças emocionais, os acidentes de trânsitos, que ceifam vidas particularmente entre os adultos jovens além da ampliação da quantidade deles com incapacidades físicas ou mentais temporárias ou permanentes ou de deficiências definitivas. A precarização das condições de trabalho aliado a processos de trabalho inadequados tanto nas indústrias quanto no setor de serviços trazem como conseqüência um alto número de acidentes de trabalho e de doenças ocupacionais e hoje já se pode falar numa epidemia de lesões por esforço repetitivo ou doenças ósteo-musculares relacionadas à ocupação e trabalho.

Dentre as doenças crônicas degenerativas destacam-se as doenças cardiovasculares e os cânceres, respectivamente a primeira e terceiras causas de óbitos no município em 2000 (30,5% e 16,8% do total de óbitos). Sabe-se que ambas tem importante relação com hábitos de vida: sedentarismo, hábitos alimentares inadequados (dieta rica em gordura e pobre em fibras), tabagismo, etc.

A segunda causa de óbito em Campinas são as causas externas, destacando-se os homicídios e os acidentes de trânsitos. Embora não se tenha estatística adequada, sabe-se também da importância destas causas como geradoras de incapacidades e deficiências motoras, transitórias e muitas vezes permanentes.

Tudo isto nos obriga a buscar novas formulações que se contraponha aos modelos tecno assistenciais até então hegemônicos. 

Melhorar as condições de vida e de saúde do Campineiro nas próximas décadas significa, portanto, abrirem-se agendas capazes de alterar os determinantes apontados acima.

 

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