Médico brasileiro coordena ações na África e avalia Programa Municipal de DST/Aids de Campinas

31/07/2006

Josué Lima, ex-coordenador da área programática da Secretaria Municipal de Saúde,
analisa avanços do setor e conta como sua equipe busca respostas ao avanço da pandemia

A tradução objetiva para a expressão "big killers", em língua inglesa, pode ser "grandes matadores". O termo, no entanto, usado ultimamente para falar do estrago provocado na África através da aids e da tuberculose, por exemplo, não revela tudo que acontece em países como Moçambique, onde estimativas oficiais dão conta de que mais de 1,5 milhões de pessoas têm o vírus hiv.

Afinal, para além do vírus hiv (a aids) ou do bacilo de Koch (tuberculose) os "grandes matadores" são problemas históricos que massacram o continente, especialmente em sua porção ao sul do Saara.

Aliados à aids e à tuberculose, à malária, à desnutrição, e às guerras, a miséria e disputas internacionais de países ricos travados sobre o solo africano e seus habitantes, entre outras questões, colocam países como Moçambique entre os 10 mais afetados pela aids em todo o planeta.

O Programa Municipal de DST/Aids de Campinas recebeu no mês de julho a vista de seu ex-coordenador, Josué Lima, médico formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que coordena, a partir da capital moçambicana, Maputo, programas da Universidade de Colúmbia / International Center for Aids Care and Treatment Programs – UC/ICAP (instituição norte-americana) em que os profissionais de saúde encontram, nas adversidades do país, em vez de desestímulo, um conjunto de desafios para mudar para melhor a situação do país e oferecer respostas ao avanço da pandemia.

Na seqüência, confira a íntegra da entrevista concedida no mês de junho com exclusividade, ao Programa Municipal de DST/Aids de Campinas.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - O senhor foi coordenador do Programa Municipal de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids de Campinas até o ano de 2000. Na sua opinião, o que mudou, na organização desta área programática e como que você entende estar a epidemia na cidade e no Brasil?

Josué Lima - Eu tenho uma impressão muito geral disso, não posso me aprofundar nessas informações, nessa resposta, mas a minha impressão é que tudo ( o Programa DST/Aids) avançou muito, ampliou muito, passou a ter um perfil um pouco diferente, um estilo mais ousado o que eu acho muito positivo. Alguns projetos que eram difíceis de se desenvolverem naquela época, por várias questões ... Por exemplo: Redução de Danos. Por várias questões, dificuldades e alguma falta de sensibilização das pessoas na época, nesse momento avançaram muito. A partir de 2001 o projeto começou se desenvolver mais e foi se ampliando, foi tomando força, a equipe é mais experiente, mais constituída e hoje é um programa bastante maduro e que foca, não só a questão da Redução de Danos, com distribuição de seringas e outras ações específicas, mas o Programa de Redução de Danos também encara a situação do usuário de drogas como um todo, não só o usuário de drogas injetáveis, e isso, eu acho que é um grande destaque, que inciou-se basicamente àquela época. Outra questão, também, que eu acho que essa foi radical, é a organização, a maior autonomia do Programa. Eu não sei se a palavra autonomia é a mais apropriada, mas, assim, o Programa passou a ter um gerenciamento mais facilitado em todos os sentidos, na área assistencial, na área de prevenção, e começou organizar as sub-áreas. Pensando em hiv e aids como um todo, organizou a área da assistência, e as pontes que ela faz com a área de prevenção e toda a ponte que faz com a assistência primária, considerando que a assistência às pessoas que vivem com hiv ou aids seria uma assistência secundária, ou mesmo terciária, então, toda essa articulação com outros níveis hierárquicos de atenção, não é? Isso eu acho que é um destaque muito grande. E essa integração, até física, da área de assistência, com a área de prevenção, e constituir um Centro de Referência, onde todas as pessoas que trabalham estão muito próximas, e todos têm um conhecimento muito geral de tudo, ou seja, o compromisso é de todos e não só do grupo da assistência ou do grupo da prevenção, do grupo da vigilância ... Todos trabalham juntos por um fim comum e isso me impressionou muito, pois é uma coisa muito difícil de acontecer e eu percebi que nesses últimos cinco anos isso é um fato real em Campinas. Eu fico muito contente, pois, claro que isso é fruto do grupo, em si, que trabalhou muito e a gente sabe que não foi fácil e que eu entendo também, já que participei anteriormente disso, foi uma continuidade e uma ampliação do que a gente gostaria que fosse um dia. Sendo assim, acho que hoje, avaliando retrospectivamente, tá muito melhor que antes, mas foi fruto de um "crescendo", um desenvolvimento atingindo a maturidade. Uma coisa que me chamou muito a atenção daquela época pra agora é que a cobertura de testes de hiv em gestantes agora é praticamente 100%. Naquela época em que estávamos começando com essa estratégia tudo era muito difícil e lento. E hoje, as informações que eu tenho, é que teoricamente todas as gestantes que vão às unidades básicas de saúde conseguem receber a oferta do teste de hiv, o aconselhamento, o resultado, e chegam às maternidades, já testadas. Quando isso não acontece, por algum motivo, ou quando as maternidades recebem pessoas que não fizeram o teste de hiv no pré-natal em Campinas, pode ser que tenham feito o pré-natal em outra cidade que não tem o teste. As próprias maternidades estão prontas para oferecer o teste rápido, e então acabam ampliando muito mais essa cobertura. A impressão que eu tenho é que avançou muito, e eu fico muito feliz de ver isso dessa maneira aqui em Campinas.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - E com relação ao comportamento da epidemia?

Josué Lima – O Brasil como um todo tem uma prevalência de hiv baixa, é menos de 1% (é 0,66%). Então, isso é muito importante e muito bom para o país. E mesmo assim, com essa baixa prevalência, ainda existem muitas pessoas que se infectam. Hoje, ouvi informações de que todo mês chegam 40 a 50 pacientes hiv positivos para serem atendidos no Centro de Referência DST/Aids de Campinas tem essa prevalência também baixa, mas mesmo assim, ainda existem pessoas se infectando na cidade. É difícil dizer se está aumentando ou se está diminuindo. Mas com bastante segurança, a tendência de Campinas deve ser a tendência do País, que é uma tendência de estabilidade. Isso vem acontecendo no País como um todo. Em São Paulo, o Estado de São Paulo, e em Campinas, como tem um Programa muito bom, a tendência é que esse efeito tenha impacto e que essa estabilidade seja muito definida, mas pessoas ainda estão se infectando e isso é uma coisa que nos preocupa. Então eu acho que a tendência, nesse sentido é a manutenção dos projetos de prevenção já existentes e mesmo a ampliação desses projetos com criatividade. Sabemos que às vezes se avança em alguns projetos, pois tem um grupo forte trabalhando, mas às vezes alguns projetos começam ficar mais frágeis. Por vários motivos às pessoas se desistimulam, mudam de atividade e o projeto pode ser interrompido. Tem de haver uma constante vigilância, uma manutenção, para que ao menos esses programas de grande impacto, como são esses projetos para usuários de drogas, como um todo, para profissionais do sexo, para jovens, para mulheres e, claro, para a população em geral não sejam interrompidos ou mesmo lentificados. A maioria das pessoas no Brasil se infecta pela atividade heterossexual. Isso significa que a atividade de prevenção deve ser voltada também para a população em geral. Quanto à área de assistência, hoje eu acho que a oferta de serviço é muito boa, então, a gente começa se preocupar, além disso, além da cobertura, com a qualidade. Sabemos que o atendimento do Ambulatório Municipal sempre foi considerado de muita qualidade e eu sei que cada vez isso está melhorando mais, com profissionais preparados, com especialistas em doenças infecciosas, uma boa equipe de enfermagem e os outros profissionais, agentes de saúde, técnicos de alto nivel. Então é investir para o desenvolvimento da promoção de qualidade no serviço. Não só na qualidade da atenção médica, mas na atenção psicológica, social e nutricional que é uma coisa que não pode estar desvinculada da questão clínica em si e do atendimento médico, dos medicamentos, da realização de exames. A condição psicológica e social vivenciada pelas pessoas vivendo com hiv/aids é muito especial. A aids no Brasil, com o passar dos anos, foi se concentrando nas classes sociais mais desfavorecidas. O componente social na epidemia da aids no Brasil hoje é muito importante. Sabemos que o Centro de Referência de Campinas tem um cuidado muito grande com todas essas questões e a equipe é muito atenta com isso. E pra finalizar, além dessas duas áreas que eu foquei, a questão dos dados que você perguntou anteriormente, hoje eu também fiquei sabendo que mesmo profissionais médicos que atendem pacientes aqui no Centro de Referência, também têm um tempo dedicado para a organização e avaliação de dados de vigilância da aids, das doenças sexualmente transmissíveis, etc. Isso é muito interessante.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - Isso não havia na sua época na coordenação do Programa?

Josué Lima - Não, isso não ocorria Esse envolvimento dos próprios profissionais que também, além de atender, têm a oportunidade de produzir e avaliar os dados como um todo é um diferencial muito grande, pois garante que uma impressão individualizada, subjetiva, passe a ser mais coletiva, objetiva. Outro aspecto que também me chamou muito a atenção aqui no Centro de Referência, além de todas as outras coisas, foi a relação que se estabeleceu com as organizações não-governamentais (ongs). Percebe-se uma grande proximidade e intimidade com as ongs locais além de se ver garantida a participação dessas instituições de forma integrada nas ações. Houve um amadurecimento nesse processo. Tive a oportunidade de encontrar alguns representantes de ongs da minha época. Vários continuam atuando e participando ativamente dessas questões relativas ao hiv/aids e mantendo plenamente suas instituições e projetos. E finalmente, para mim foi uma agradável surpresa saber da existência de uma Assessoria de Imprensa e Comunicação no Centro de Referência. É incrível essa sensibilidade de ter o profissional dessa área trabalhando junto ao Centro. Entre as várias coisas que aprendi trabalhando na Secretaria de Saúde de Campinas, uma que eu destaco bastante foi o aprendizado sobre a importância de trabalhar muito próximo e com intimidade com a área de Comunicação, a área de Imprensa e Jornalismo.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - Não é só uma Assessoria de Imprensa, mas algo mais amplo: Trata-se de um Núcleo de Educação e Comunicação Social ...

Josué Lima - Isso. Exatamente ...   Parabéns por isso.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas -  Tem um trabalho específico com rádios, experiências de produção gráfica e comunicação eletrônica, virtual mesmo, com as ong. Hoje existem pelo menos 10 rádios comunitárias fixas, trabalhando com o Programa de DST e Aids ... Então, naquela época tudo isso era novo pra mim que sempre havia atuado apenas em assistência e pesquisa médica. Só fui conhecer um pouco dessa área quando trabalhei no Programa Municipal de DST/AIDS (Secretaria de Saúde de Campinas), onde eu tinha um bom contato com a Assessoria de Imprensa. Posteriormente, trabalhando no Ministério da Saúde (Programa Nacional de DST e Aids), tive a oportunidade de acompanhar com mais proximidade e ver como a área de Comunicação trabalha as estratégias voltadas ao hiv/aids. Fiquei muito bem impressionado de ver isso aqui no Centro de Referência. Tive a informação e achei o máximo, há um treinamento ... Foi isso que eu entendi e, se não for isso, você me corrige por favor. Vocês estão oferecendo uma capacitação para profissionais da área de rádiodifusão comunitária, mas essa é uma capacitação mista, onde eles, além de aprenderem as questões mais técnicas, do hiv, da aids e das dst, principalmente a questão da prevenção/educação, eles também têm conceitos específicos da área de comunicação, de rádio. Então, no mesmo tempo que vocês aprimoram esses profissionais nas suas áreas específicas, vocês também preparam para atuarem num tema que é fundamental para o nosso país que é a promoção da saúde, é o combate contra o hiv/aids e dst. Sabemos que muitas vezes esses profissionais não tiveram a chance de fazer um curso técnico, ou uma faculdade nessa área e essa acaba sendo uma grande oportunidade em que eles podem ganhar, mas também contribuir.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - E muitas vezes, para eles, é novidade ...

Josué Lima - Mas eu acho que quase sempre é novidade, porque nós não estamos acostumados com profissionais de comunicação especializados na área de saúde. Então, quando você consegue fazer essa capacitação e prepará-los mais para a área de saúde, principalmente hiv e aids, torna-se um ganho para todos. Isso é muito diferenciado, muito avançado. Eu acho ... Parabéns!

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - Isso é viável e tem importância para lidar com a aids na África, onde o senhor trabalha hoje? Até pelo fato de o rádio ser mais acessível que outros veículos de comunicação ...

Josué Lima - Do meu ponto de vista é uma alternativa muito importante. Eu tive oportunidade de assistir um filme feito lá em Moçambique sobre esse tema. O diretor do filme é um brasileiro que mora lá há muitos anos.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - Não é o Fernando Meirelles, não (risos)?

Josué Lima - Não, não é o Fernando Meirelles, não (risos). O Fernando Meirelles trabalhou lá no Quênia, né? E muito bem, mas não mora na África. Fez aquele filme sensacional, "O Jardineiro Fiel"... O filme de Moçambique a que estou me referindo mostra a trajetória de uma comunidade pra ter acesso a uma rádio comunitária. É uma comunidade muito simples, bem no interior, numa das províncias do país e daí eles têm a possibilidade de receber uma rádio comunitária. A prevenção ao hiv/aids é um dos focos do filme, e nessa rádio comunitária. Claro que no Brasil a gente tem mais tecnologia. A população que vive na nossa zona rural é pequena, acredito que atualmente seja menos que 20% no Brasil. Em Moçambique a população da zona rural é de aproximadamente 65% e o nível sócio-econômico é bastante baixo. O país está entre os mais pobres do mundo e também entre os países com maior prevalência de hiv e aids (a prevalência nacional de pessoas com hiv, de 15 a 49 anos, em 2004, é de 16,2%). A conjuntura nacional é bastante complexa o que implica em grandes desafios para o desenvolvimento de estratégias de prevenção. Poucas pessoas têm acesso à televisão. O índice de analfabetiso é muito elevado, cerca de metade da população é analfabeta. Muitos pacientes só são atendidos com auxílio de tradutores das línguas locais. Maputo, a capital, é uma cidade grande (cerca de 1 milhão de habitantes), mas não reflete a realidade do restante do país.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - E como é seu trabalho em Moçambique, como o senhor começou esse trabalho e como ele se desenvolve?

Josué Lima - Eu havia trabalhado em Campinas até o ano 2000. No início de 2001 eu fui para o Programa Nacional de DST e Aids, do Ministério da Saúde e em junho de 2004 eu fui convidado para dirigir os programas da Universidade de Colúmbia, dos Estados Unidos, em seu projeto lá em Moçambique. Até então eu tinha apenas feito algumas consultorias em Angola e na Zambia. Poder trabalhar na África e, particularmente no controle do hiv, das aids e das doenças infecciosas, era um desejo muito antigo.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - O senhor fez faculdade em Campinas?

Josué Lima - Sim toda a minha formação acadêmica foi em Campinas, Unicamp. Fiz aqui a faculdade de Medicina, especialização em doenças infecciosas e depois o mestrado e doutorado na mesma Universidade. Fui também bolsista em um programa de hiv e aids financiado pelo Conselho Britânico (Londres) durante um ano e 3 meses. Em Moçambique eu cheguei em agosto de 2004, já faz quase dois anos. Éramos inicialmente em quatro pessoas e atualmente somos em 45 profissionais. Nós trabalhamos na cidade de Maputo, que é a capital do país, e também trabalhamos em mais cinco províncias incluindo alguns hospitais rurais. O país, como um todo, tem onze províncias. Nosso trabalho lá cobre quatro grandes áreas. Uma delas é o suporte técnico ao Ministério da Saúde que há dois anos assumiu a distribuição universal de anti-retrovirais. Antes disso, o tratamento anti-retroviral em Moçambique era feito por algumas organizações não-governamentais e o governo mais acompanhava esse trabalho. A segunda área em que trabalhamos é suporte dentro de serviços governamentais que atendem pacientes com hiv ou aids. Em Moçambique existem aproximadamente 44 serviços que oferecem o tratamento anti-retroviral no país todo. A Colúmbia está presente dando suporte a 19 desses serviços. Todos são serviços do governo vinculados ao Ministério da Saúde. A Colúmbia está junto, acompanhando e dando suporte global, desde a infraestrutura física (reformas, adaptações e construções), contratação de recursos humanos complementares, apoio no gerenciamento e na supervisão dos serviços. A terceira área em que atuamos é relativa a montagem de centros de referência para a prevenção da transmissão vertical do hiv. Atualmente damos suporte a dois desses serviços, um no Norte e o outro no Sul do país. É claro que a prevenção à transmissão vertical deve se dar em todas as unidades de saúde que existem, desde a unidade de saúde mais primária e mais simples, a qual deve oferecer o teste de hiv e, se for necessário, o tratamento preventivo para evitar a transmissão de mãe para filho. Mas isso é bastente difícil em Moçambique. A cobertura é muito baixa. Então nós montamos centros de referência que podem implementar várias estratégias nessa área e depois reproduzir em outros serviços. A quarta grande área em que a gente trabalha é na renovação, na reforma ou na construção de laboratórios clínicos no país. O país tem uma deficiência em laboratórios. Os que existem muitas vezes encontram-se comprometidos. Dessa maneira estamos reformando 16 laboratórios em todo o país.

Programa Municipal DST/Aids de Campinas - O grande avanço da pandemia de aids, hoje a gente vê pelos dados da Organização das Nações Unidades (ONU), por exemplo, dá-se no Leste Europeu, Sudeste Asiático, mas principalmente na África Subsaariana. Qual sua avaliação desse quadro e quais os rumos a seguir para lidar com essa situação?

Josué Lima - A África Subsaariana, como você mesmo disse, é a região mais afetada do mundo pela pandemia do hiv e da aids. Os dados núméricos são assustadores. Tudo se concentra lá em termos quantitativos de pessoas infectadas com o vírus. Em algumas localidades os números têm até aumentado. A prevalência já é muito grande e não diminui. Moçambique tem quase 20 milhões de habitantes e estima-se que pelo menos 1 milhão e meio vivem com hiv/aids. ( pausa) Estima-se que 240 mil pessoas deveriam estar tomando anti-retrovirais. Atualmente cerca de 27 mil pessoas estão usando os anti-retrovirais. Para que haja um impacto significativo é preciso que rapidamente um número muito grande de pacientes iniciem o tratamento. Por isso que o nosso foco, nos nossos projetos, é acelerar a inclusão de pacientes em terapia anti-retroviral. O impacto nessa estratégia traduz-se na diminuição da mortalidade, diminuição do número de doentes, melhorara na qualidade de vida das pessoas e outros vários ganhos. Acho que o continente africano, abaixo do Saara, historicamente tem dificuldades básicas em diversas áreas, além de enfrentar situações extremas, de guerras, situações políticas muito difíceis, corrupção, tudo que dificulta para que um país possa se desenvolver. Mas mesmo assim, a gente vê que alguns países têm, nos últimos anos, melhorado, mais até do que se esperava. Algumas pessoas que estiveram em Moçambique há alguns anos e voltam pra lá agora, comentam que tem havido um avanço nos últimos anos. Então, esse é um dado positivo. Eu acho que o mundo, como um todo, tem ficado um pouco mais atento a essas questões e vários mecanismos têm sido desenvolvidos para que, pelo menos, na área do hiv e aids, tuberculose e malária, que são as grandes endemias e os grandes problemas de saúde pública desses países, possa haver alguma melhoria. Hoje há grandes volumes de recursos financeiros envolvidos com isso, como os recursos do Fundo Global, recursos do Banco Mundial, e recursos de vários países, entre eles, muito recurso do governo dos Estados Unidos. Só os recursos do programa de emergência do governo americano (PEPFAR) são 15 bilhões de dólares para serem usados ao longo de cinco anos em hiv e aids. Quase todo esse recurso está voltado para os países da África Subsaariana. O Fundo Global, além de disponibilizar fundos para hiv/aids, também inclui a tuberculose e a malária. Então, essa preocupação aumentou muito. Hoje a questão de recursos financeiros, ela continua sendo importante, mas existem mais recursos disponíveis. Agora a questão não é só ter recurso financeiro. Você precisa ter uma estrutura montada, organizada, e principalmente pessoas bem preparadas para esses trabalhos específicos. Então, atualmente, havendo mais recursos financeiros para hiv/aids, outro problema que passa a se destacar bastante é a disponibilidade de recursos humanos e de infra-estrutura, ou seja, condições para cuidar dos pacientes, desenvolver projetos etc.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - O senhor pode dar um exemplo? É algo como não ter água no hospital?

Josué Lima - Exatamente. Os centros de saúde, os hospitais, têm bastante dificuldade em relação à própria estrutura física, centros de saúde com uma população imensa a ser atendida, ou mesmo, às vezes, o hospital é grande, mas o número de pessoas doentes ultrapassa a dimensão do serviço, não havendo camas para todos os internados. Então há um problema estrutural que precisa ser melhorado como um todo. Isso é umas das questões, mas ela não é a mais importante. Ela dificulta, ela, muitas vezes, atrasa o desenvolvimento dos programas, mas dá-se uma solução. É possível construir algumas salas anexas, dividi-se uma sala grande em duas, instala-se estruturas pré-fabricadas, e vai se adaptando como é possível, mas privilegiando o atendimento a quem precisa. Essas dificuldades são sempre esperadas quando se organiza um novo serviço. O que tem me preocupado mais hoje em tudo isso é a escassez de recursos humanos nas diversas áreas da saúde.

Programa Municipal DST/Aids de Campinas - Por isso há brasileiros indo pra lá?

Josué Lima - Sim. Não só brasileiros tem ido para lá, mas estrangeiros de vários outros países. O Brasil tem tido boas parcerias com Moçambique nessa área por vários motivos, entre eles a facilidade da língua, uma identidade cultural e o acúmulo de experiência em hiv/aids que o nosso país tem tido.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - Aliás, com quantos brasileiros você trabalha lá?

Josué Lima - Hoje, no nosso projeto, nós somos em 10. Quatro trabalham mais nas áreas programáticas e técnicas específicas e os outros trabalham nas províncias, gerenciando, supervisionando os projetos e mesmo acompanhando os serviços e atendendo pacientes. Entre esses brasileiros somos 8 médicos e duas psicólogas.

Programa Municipal de DST/Aids de Campinas - Além de outros países ...

Josué Lima - Em Moçambique temos uma equipe com uma profissional suíça, dois espanhóis, duas americanas, quatro italianos, 10 brasileiros e os demais, todos são moçambicanos, num total de 45 pessoas. Então, retornando para a sua pergunta: Nós temos várias dificuldades em desenvolver os projetos e os recursos financeiros estão disponíveis, mas não são tantos. Há uma dificuldade em gerenciar e administrar tudo isso e fazer as coisas acontecerem. Moçambique tem apenas 650 médicos no país como um todo. Então, esses brasileiros que foram têm ajudado bastante melhorar essa assistência médica específica. Além disso nós desenvolvemos um programa de cooperação entre Moçambique, Brasil e Universidade de Columbia/ICAP, onde vários profissionais brasileiros jovens vão para o país, permanecendo lá por dois meses, atuando nos serviços assistenciais de hiv/aids. O programa possibilita que esses profissionais brasileiros conheçam de perto uma realidade africana, tenham um aprendizado clínico nesse contexto, mas também possam, na convivência do dia-a-dia com os profissionais de saúde local, estar passando um pouco da sua experiência, constituindo assim uma rica troca de conhecimentos. É um compartilhar de vivências que acontece na rotina do trabalho, acompanhando, avaliando, e discutindo situações clínicas do dia a dia do serviço. O programa tornou-se um excelente espaço de aprendizado bilateral e uma boa troca em serviço. A maioria dos profissionais que tem ido são médicos especialistas em infectologia (no último ano do programa de residência médica ou recém terminado), além de enfermeiras e psicólogas. Em tudo que temos feito temos explorado ao máximo a nossa criatividade para uma resposta rápida e de maior impacto. Apesar das dificuldades, nesses dois anos muita coisa boa já aconteceu. Atualmente, do total de serviços específicos para o tratamento em hiv/aids e anti-retrovirais do sistema nacional de saúde, a Universidade de Columbia/ICAP está presente, dando suporte, para quase 40% desses serviços (19 em 49). Do total de pacientes em uso de anti-retrovirais no país, um terço está nos serviços que recebem suporte da Universidade de Columbia/ICAP. Estou bastante otimista e espero que possamos continuar crescendo e contribuindo nesses grandes desafios. Temos que reconhecer que uma parte do nosso sucesso em Moçambique deve-se à contribuição da Prefeitura Munipal de Campinas/Secretária Municipal de Campinas e da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pela sensibilidade em nos ajudar no programa de cooperação em desenvolvimento. Temos recebido profissionais de altissima competência e muito motivados, de ambas as instituições e de outras instituições universitárias também. Felizmente, até o momento, todos os profissionais que participaram do programa de cooperação ficaram muito satisfeitos com a experiência. Dois deles optaram por retornar ao país e hoje fazem parte da nossa equipe.

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