Paidéia é destaque no jornal Diário do Povo

09/09/2002

Carlos Lemes Pereira
Da Agência Anhangüera
carlao@rac.com.br

A memória de dona Julieta já mergulha cada vez mais fundo na névoa acumulada em seus estimados 93 anos. Mas quando as lembranças emergem, sempre repetem dois cenários: a mansão onde morou durante quatro décadas - a qual chegou a herdar por pouquíssimo tempo - e a manilha de esgoto que lhe serviu de "casa" nos últimos 12 anos. Hoje, a velhinha acalenta sua saga incrível e dramática no aconchego modesto de uma moradia de três cômodos, no Jardim das Roseiras, periferia de Campinas, que ganhou graças ao esforço conjunto da comunidade do bairro e do Paidéia, programa da Secretaria Municipal de Saúde.

A melhoria de condições de vida, no entanto, não subiu à cabeça de Julieta:
nos fundos da casinha, ela ainda guarda a manilha que lhe abrigou das chuvas
e do frio de tantas estações. Está lá, como um monumento a gente como ela
mesma, que consegue amar a vida até quando não há motivo nenhum para isso.

A história de "Vó Ju" - como é chamada carinhosamente pelos vizinhos - é,
certamente, a mais espetacular, porém está longe de ser a única cheia de
lances comoventes, que o Paidéia vem colecionando, em pouco mais de um ano de atividade (leia textos nesta página).
Ágil para a idade, Vó Ju é um catatau que mal chega a um metro e meio. O que certamente aliviou bastante a barra que foi morar por tantos anos dentro de um tubo que, de comprimento, equivale à sua estatura, e tem apenas um metro de diâmetro. Recorda-se de fatos, entretanto, embaralha datas. Ou
vice-versa: não sabe dizer em que cidade nasceu. Mas jura que é "da mistura
de negro com índio". Seu sobrenome seria Cesário.

A maior parte de suas aventuras e desventuras foi resgatada pelo pessoal que
a ampara. "Já no início de nossos contatos com a população, dentro do programa Paidéia, tomamos conhecimento da situação de uma mulher idosa, que vivia dentro de uma manilha, remanescente de uma obra da Sanasa" - conta a enfermeira Míriam Cristina Godoy De Crescenzo, coordenadora do Centro de Saúde da Vila Perseu Leite de Barros - "E foi consensual que não estaríamos cumprindo nosso papel enquanto não melhorássemos aquela condição de vida, degradante e de risco".
"Nas primeiras tentativas de aproximação, ela foi muito arredia.
Localizamos, inclusive, uma irmã dela, que morava aqui na região e que já
havia tentado levá-la pra morar junto, mas nada a convencia a abandonar a
manilha" - acrescenta - "Ainda bem que uma integrante do Conselho Local de
Saúde conseguiu conquistar a confiança dela e permitiu que concretizássemos
nosso apoio".

Ao longo dos dois meses que duraram os esforços para se aproximarem de fato de Vó Ju (de fevereiro a abril deste ano), os servidores do Centro de Saúde e os voluntários do bairro montaram um precário quebra-cabeças, que
desvendou um pouco o mistério da "velhinha da manilha".

"Por 42 anos, ela trabalhou como cozinheira pra um casal de estrangeiros que
morava na Nova Campinas. O marido de dona Julieta, que ainda era vivo, era o motorista da casa", prossegue Míriam.
Sentada na bicama cor-de-rosa, fumando seu cigarrinho com avidez, Vó Júlia
acompanha o relato, calada. Só que atenta e sem conseguir evitar uns leves
assentimentos com a cabeça, na medida em que a história se aquece. Na
verdade, passa a impressão de que teria condições, perfeitamente, de contar
tudo com suas próprias palavras, mas, malandramente, se diverte com a
sensação de ser a personagem de uma quase lenda.
"Os donos da casa se afeiçoaram tanto com os dois funcionários, que fizeram
deles herdeiros do imóvel. De fato, quando ambos os proprietários faleceram,
dona Ju e o marido continuaram morando lá, mas logo parentes dos patrões
trataram de reaver a casa. Na rua e sem emprego, o marido dela morreu em
pouco tempo. E dona Ju virou moradora de rua. Ou da manilha, o que dava na
mesma", conclui a enfermeira.

O relato é retomado por Itamar Alves, coordenador da Pastoral Bom Pastor: "A
partir do momento que a nossa amiguinha topou encarar a mudança de vida,
bastaram umas festas da pizza e do pastel, mais doações de material de
construção por funcionários do próprio Centro de Saúde e a mão-de-obra
voluntária de moradores, pra que a gente levantasse os R$ 875,00 necessários
pra erguer a casinha pra ela". A comunidade também supre as necessidades de alimento e roupa de Vó Ju. Sua saúde - "firme", como ela própria define - é
cuidada pelo Paidéia.

A manilha foi apenas removida para alguns metros de onde estava. "Sentimos
que esse era o desejo dela e, inclusive, faz parte da filosofia do Paidéia
desenvolver a pessoa em todos os planos, não só em termos de saúde, mas
sempre respeitando o seu contexto", define Míriam.
Vó Ju concede um "sim" mais acentuado com a cabeça, sorriso cheio de
malícia. E dá o desfecho, ligando o radinho que veio junto com a mobília
doada. Dribla os pagodes com os dedos espertos no dial. "Eu gosto é de
sertanejo", sentencia. Calma, como quem realmente se sente em casa.

A equipe do Paidéia baseada no Centro de Saúde do Jardim Santa Lúcia ainda
não topou com ninguém morando dentro de manilha de esgoto. Encarou situação pior: uma mulher de 48 anos, portadora de problemas psicológicos, que vivia num casebre tão insalubre quanto a própria rede de esgoto. "Ratazanas enormes passeavam por todo canto, cavavam buracos na base da construção, e a paciente agravava ainda mais seus riscos, acendendo fogueiras dentro dos cômodos, pra cozinhar", lembra a enfermeira Rosana Aparecida Garcia, coordenadora do CS.

"Logo que começamos a intervir, nos demos conta de que simples reformas não bastariam; o imóvel estava condenado" - relata - "Então, em parceria com o pessoal da Pastoral Nossa Senhora da Libertação e outros órgãos da
Prefeitura, como Controle de Zoonoses, Vigilância Sanitária e a Coordenadoria das Administrações Regionais, resolvemos demolir tudo, sanear a área e construir de novo, às custas de doações da comunidade".
Enquanto demorou a empreitada, a paciente ficou abrigada no Hospital de
Saúde Mental Doutor Cândido Ferreira. "Não no sentido manicominial", frisa
Rosana. Hoje, a mulher se trata no CS e melhorou o suficiente para manter a
nova casa em condições razoáveis de higiene. "Agora que vimos que deu tudo
certo, confesso: assumimos a movimentação com muito medo, pois mexer na vida das pessoas sempre implica em riscos no plano emocional", observa. (CLP/AAN)

Faz parte do processo de capacitação das equipes do Paidéia desenvolver
feeling para destrinchar onde reside o verdadeiro drama, dentro dos "dramas"
que chegam a seus ouvidos. O Centro de Saúde do Jardim São José (que hoje se expandiu para um módulo no Parque Oziel, integrante da maior ocupação de
área urbana da América Latina) recebeu uma denúncia do Conselho Tutelar da
Criança e do Adolescente, segundo a qual uma mulher estaria prostituindo a
filha adolescente.

"Na averiguação, constatamos outra realidade, infelizmente também
problemática" - informa a médica generalista Niurka Expósito - "A mãe era
acometida por um quadro psicótico grave, enquanto a filha, atualmente com 16
anos, mantinha um relacionamento com um traficante, já era dependente de
drogas, tinha um bebê com ele e agora, ainda por cima, está esperando um
filho de outro homem".
O que parece que não pode piorar, piora, sim. "Sob efeito de drogas, a jovem
brigou com a mãe, avançando nela com uma tesoura em punho, e chegou a usar a mangueira do gás pra tentar o suicídio e a morte do bebê, que tinha então sete meses", continua Niurka. A confusão levou a adolescente para a Febem.

"Começamos por tratar a mãe e sua evolução foi tão satisfatória, que ela
teve a lucidez de pedir que a acompanhásssemos na audiência na Vara de
Infância e Juventude que avaliou o caso. O Juizado levou em consideração o
nosso potencial de apoio e a jovem foi colocada em regime de liberdade
assistida, além de estar se tratando da dependência e - o que é muito
animador - cumprindo o pré-natal plenamente", orgulha-se a médica. (CLP/AAN)

A associação com a imagem do "pai" (enquanto protetor), reforçada pelo apelo
do termo "idéia" é apenas uma feliz coincidência fonética. "Paidéia", na
verdade, é um conceito grego, originado pela chamada "democracia ateniense", que quer dizer "desenvolvimento integral pessoal". A explicação é do secretário de Saúde de Campinas, Gastão Wagner de Souza Campos. Ele é o autor do projeto e responsável pela sua implantação, em agosto do ano
passado, o que o anima a definir o Paidéia como "o programa de saúde da
família com sotaque campineiro".
"A gente se sentiu realizado quando, na 6ª Conferência Municipal do SUS,
realizada no fim-de-semana passado, os 480 delegados - metade profissionais
da Saúde Pública, metade usuários do sistema - referendou o Paidéia",
declara Gastão.

O caminho até esse resultado, porém, foi longo. "Como professor de Medicina
Preventiva da Unicamp e desde a vez anterior em que ocupei a Secretaria,
entre 1989 e 1990, eu vinha alimentando uma teoria de clínica ampliada, ou
seja, explorar todo o potencial de apoio à comunidade que médicos e
enfermeiros possuem, além dos serviços de saúde, exclusivamente. Um jeito de trabalhar que, sem ser paternalista, propiciasse apoio pros pacientes
superarem condições adversas de existência", diz o secretário. "Já em
outubro de 2000, pouco antes de voltar ao governo municipal, defendi na
Unicamp uma tese de livre-docência justamente sobre essa nova metodologia",
lembra.

Ele admite que, no início, enfrentou resistências, dentro de sua própria
Pasta. "Primeiro, havia um certo receio de se desmontar o que a rede pública
já havia consolidado de bom. Além disso, como as escolas não formam
profissionais dentro desse espírito, pesou o sentimento de limitação, gente
que interpretava a proposta como uma pretensão de 'assumir nas costas os
pecados do mundo'. Por fim, os profissionais especializados chegaram a se
sentir ameaçados, pelo fato de haver valorização dos generalistas. E, como o
programa exige arranjos organizacionais novos, surgiram barreiras até com
relação à figura do agente de saúde", enumera.
No Paidéia, as equipes de saúde vão de casa em casa para cadastrar as
famílias e prestar assistência à saúde. Elas são compostas de médicos,
dentistas, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de
saúde. Estes são moradores da própria comunidade. Além da prevenção e
atendimento a doentes, os profissionais são treinados para valorizar a
educação em saúde de todas as pessoas da família, com ênfase para gestantes, crianças e idosos.

Embora a maioria dos procedimentos médicos ocorram nos centros e postos de
Saúde, pacientes em estados mais graves são atendidos em casa. No primeiro
semestre do Paidéia, as equipes realizaram uma média mensal de 2.890 visitas
domiciliares.

Em um ano, a Secretaria de Saúde colocou em atividade 116 equipes do Paidéia em todas as regiões da cidade. Até o final de 2002, a previsão é de chegar a 150 equipes, atendendo a 150 mil famílias. A meta é implantar 200 até o final de 2004. (CLP/AAN)

DIRETRIZES DO PAIDÉIA

· Promoção e prevenção na comunidade: o profissional de saúde trabalha para
prevenir doenças e promover a saúde e a autonomia das pessoas
· Acolhimento e humanização: o profissional de saúde ouve o cidadão para
identificar suas necessidades, acolher com respeito e responder com
responsabilidade
· Atendimento clínico de qualidade: o profissional de saúde atende cada
pessoa integralmente, respeitando especificidades e diferenças
· Participação da comunidade: o usuário é co-responsável pelos serviços,
tanto no planejar, como no acompanhar e fiscalizar as ações

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