Carlos Lemes
Pereira
Da Agência Anhangüera
carlao@rac.com.br
A memória de
dona Julieta já mergulha cada vez mais fundo na névoa acumulada
em seus estimados 93 anos. Mas quando as lembranças emergem,
sempre repetem dois cenários: a mansão onde morou durante quatro
décadas - a qual chegou a herdar por pouquíssimo tempo - e a
manilha de esgoto que lhe serviu de "casa" nos últimos
12 anos. Hoje, a velhinha acalenta sua saga incrível e dramática
no aconchego modesto de uma moradia de três cômodos, no Jardim
das Roseiras, periferia de Campinas, que ganhou graças ao esforço
conjunto da comunidade do bairro e do Paidéia, programa da
Secretaria Municipal de Saúde.
A melhoria de
condições de vida, no entanto, não subiu à cabeça de Julieta:
nos fundos da casinha, ela ainda guarda a manilha que lhe abrigou
das chuvas
e do frio de tantas estações. Está lá, como um monumento a
gente como ela
mesma, que consegue amar a vida até quando não há motivo nenhum
para isso.
A história de
"Vó Ju" - como é chamada carinhosamente pelos vizinhos
- é,
certamente, a mais espetacular, porém está longe de ser a única
cheia de
lances comoventes, que o Paidéia vem colecionando, em pouco mais
de um ano de atividade (leia textos nesta página).
Ágil para a idade, Vó Ju é um catatau que mal chega a um metro
e meio. O que certamente aliviou bastante a barra que foi morar
por tantos anos dentro de um tubo que, de comprimento, equivale à
sua estatura, e tem apenas um metro de diâmetro. Recorda-se de
fatos, entretanto, embaralha datas. Ou
vice-versa: não sabe dizer em que cidade nasceu. Mas jura que é
"da mistura
de negro com índio". Seu sobrenome seria Cesário.
A maior parte de
suas aventuras e desventuras foi resgatada pelo pessoal que
a ampara. "Já no início de nossos contatos com a população,
dentro do programa Paidéia, tomamos conhecimento da situação de
uma mulher idosa, que vivia dentro de uma manilha, remanescente de
uma obra da Sanasa" - conta a enfermeira Míriam Cristina
Godoy De Crescenzo, coordenadora do Centro de Saúde da Vila
Perseu Leite de Barros - "E foi consensual que não estaríamos
cumprindo nosso papel enquanto não melhorássemos aquela condição
de vida, degradante e de risco".
"Nas primeiras tentativas de aproximação, ela foi muito
arredia.
Localizamos, inclusive, uma irmã dela, que morava aqui na região
e que já
havia tentado levá-la pra morar junto, mas nada a convencia a
abandonar a
manilha" - acrescenta - "Ainda bem que uma integrante do
Conselho Local de
Saúde conseguiu conquistar a confiança dela e permitiu que
concretizássemos
nosso apoio".
Ao longo dos dois
meses que duraram os esforços para se aproximarem de fato de Vó
Ju (de fevereiro a abril deste ano), os servidores do Centro de Saúde
e os voluntários do bairro montaram um precário quebra-cabeças,
que
desvendou um pouco o mistério da "velhinha da manilha".
"Por 42
anos, ela trabalhou como cozinheira pra um casal de estrangeiros
que
morava na Nova Campinas. O marido de dona Julieta, que ainda era
vivo, era o motorista da casa", prossegue Míriam.
Sentada na bicama cor-de-rosa, fumando seu cigarrinho com avidez,
Vó Júlia
acompanha o relato, calada. Só que atenta e sem conseguir evitar
uns leves
assentimentos com a cabeça, na medida em que a história se
aquece. Na
verdade, passa a impressão de que teria condições,
perfeitamente, de contar
tudo com suas próprias palavras, mas, malandramente, se diverte
com a
sensação de ser a personagem de uma quase lenda.
"Os donos da casa se afeiçoaram tanto com os dois funcionários,
que fizeram
deles herdeiros do imóvel. De fato, quando ambos os proprietários
faleceram,
dona Ju e o marido continuaram morando lá, mas logo parentes dos
patrões
trataram de reaver a casa. Na rua e sem emprego, o marido dela
morreu em
pouco tempo. E dona Ju virou moradora de rua. Ou da manilha, o que
dava na
mesma", conclui a enfermeira.
O relato é
retomado por Itamar Alves, coordenador da Pastoral Bom Pastor:
"A
partir do momento que a nossa amiguinha topou encarar a mudança
de vida,
bastaram umas festas da pizza e do pastel, mais doações de
material de
construção por funcionários do próprio Centro de Saúde e a mão-de-obra
voluntária de moradores, pra que a gente levantasse os R$ 875,00
necessários
pra erguer a casinha pra ela". A comunidade também supre as
necessidades de alimento e roupa de Vó Ju. Sua saúde -
"firme", como ela própria define - é
cuidada pelo Paidéia.
A manilha foi
apenas removida para alguns metros de onde estava. "Sentimos
que esse era o desejo dela e, inclusive, faz parte da filosofia do
Paidéia
desenvolver a pessoa em todos os planos, não só em termos de saúde,
mas
sempre respeitando o seu contexto", define Míriam.
Vó Ju concede um "sim" mais acentuado com a cabeça,
sorriso cheio de
malícia. E dá o desfecho, ligando o radinho que veio junto com a
mobília
doada. Dribla os pagodes com os dedos espertos no dial. "Eu
gosto é de
sertanejo", sentencia. Calma, como quem realmente se sente em
casa.
A equipe do Paidéia baseada no Centro de Saúde do Jardim Santa Lúcia
ainda
não topou com ninguém morando dentro de manilha de esgoto.
Encarou situação pior: uma mulher de 48 anos, portadora de
problemas psicológicos, que vivia num casebre tão insalubre
quanto a própria rede de esgoto. "Ratazanas enormes
passeavam por todo canto, cavavam buracos na base da construção,
e a paciente agravava ainda mais seus riscos, acendendo fogueiras
dentro dos cômodos, pra cozinhar", lembra a enfermeira
Rosana Aparecida Garcia, coordenadora do CS.
"Logo que
começamos a intervir, nos demos conta de que simples reformas não
bastariam; o imóvel estava condenado" - relata - "Então,
em parceria com o pessoal da Pastoral Nossa Senhora da Libertação
e outros órgãos da
Prefeitura, como Controle de Zoonoses, Vigilância Sanitária e a
Coordenadoria das Administrações Regionais, resolvemos demolir
tudo, sanear a área e construir de novo, às custas de doações
da comunidade".
Enquanto demorou a empreitada, a paciente ficou abrigada no
Hospital de
Saúde Mental Doutor Cândido Ferreira. "Não no sentido
manicominial", frisa
Rosana. Hoje, a mulher se trata no CS e melhorou o suficiente para
manter a
nova casa em condições razoáveis de higiene. "Agora que
vimos que deu tudo
certo, confesso: assumimos a movimentação com muito medo, pois
mexer na vida das pessoas sempre implica em riscos no plano
emocional", observa. (CLP/AAN)
Faz parte do processo de capacitação das equipes do Paidéia
desenvolver
feeling para destrinchar onde reside o verdadeiro drama, dentro
dos "dramas"
que chegam a seus ouvidos. O Centro de Saúde do Jardim São José
(que hoje se expandiu para um módulo no Parque Oziel, integrante
da maior ocupação de
área urbana da América Latina) recebeu uma denúncia do Conselho
Tutelar da
Criança e do Adolescente, segundo a qual uma mulher estaria
prostituindo a
filha adolescente.
"Na averiguação,
constatamos outra realidade, infelizmente também
problemática" - informa a médica generalista Niurka Expósito
- "A mãe era
acometida por um quadro psicótico grave, enquanto a filha,
atualmente com 16
anos, mantinha um relacionamento com um traficante, já era
dependente de
drogas, tinha um bebê com ele e agora, ainda por cima, está
esperando um
filho de outro homem".
O que parece que não pode piorar, piora, sim. "Sob efeito de
drogas, a jovem
brigou com a mãe, avançando nela com uma tesoura em punho, e
chegou a usar a mangueira do gás pra tentar o suicídio e a morte
do bebê, que tinha então sete meses", continua Niurka. A
confusão levou a adolescente para a Febem.
"Começamos
por tratar a mãe e sua evolução foi tão satisfatória, que ela
teve a lucidez de pedir que a acompanhásssemos na audiência na
Vara de
Infância e Juventude que avaliou o caso. O Juizado levou em
consideração o
nosso potencial de apoio e a jovem foi colocada em regime de
liberdade
assistida, além de estar se tratando da dependência e - o que é
muito
animador - cumprindo o pré-natal plenamente", orgulha-se a médica.
(CLP/AAN)
A associação com a imagem do "pai" (enquanto
protetor), reforçada pelo apelo
do termo "idéia" é apenas uma feliz coincidência fonética.
"Paidéia", na
verdade, é um conceito grego, originado pela chamada
"democracia ateniense", que quer dizer
"desenvolvimento integral pessoal". A explicação é do
secretário de Saúde de Campinas, Gastão Wagner de Souza Campos.
Ele é o autor do projeto e responsável pela sua implantação,
em agosto do ano
passado, o que o anima a definir o Paidéia como "o programa
de saúde da
família com sotaque campineiro".
"A gente se sentiu realizado quando, na 6ª Conferência
Municipal do SUS,
realizada no fim-de-semana passado, os 480 delegados - metade
profissionais
da Saúde Pública, metade usuários do sistema - referendou o
Paidéia",
declara Gastão.
O caminho até
esse resultado, porém, foi longo. "Como professor de
Medicina
Preventiva da Unicamp e desde a vez anterior em que ocupei a
Secretaria,
entre 1989 e 1990, eu vinha alimentando uma teoria de clínica
ampliada, ou
seja, explorar todo o potencial de apoio à comunidade que médicos
e
enfermeiros possuem, além dos serviços de saúde,
exclusivamente. Um jeito de trabalhar que, sem ser paternalista,
propiciasse apoio pros pacientes
superarem condições adversas de existência", diz o secretário.
"Já em
outubro de 2000, pouco antes de voltar ao governo municipal,
defendi na
Unicamp uma tese de livre-docência justamente sobre essa nova
metodologia",
lembra.
Ele admite que,
no início, enfrentou resistências, dentro de sua própria
Pasta. "Primeiro, havia um certo receio de se desmontar o que
a rede pública
já havia consolidado de bom. Além disso, como as escolas não
formam
profissionais dentro desse espírito, pesou o sentimento de limitação,
gente
que interpretava a proposta como uma pretensão de 'assumir nas
costas os
pecados do mundo'. Por fim, os profissionais especializados
chegaram a se
sentir ameaçados, pelo fato de haver valorização dos
generalistas. E, como o
programa exige arranjos organizacionais novos, surgiram barreiras
até com
relação à figura do agente de saúde", enumera.
No Paidéia, as equipes de saúde vão de casa em casa para
cadastrar as
famílias e prestar assistência à saúde. Elas são compostas de
médicos,
dentistas, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários
de
saúde. Estes são moradores da própria comunidade. Além da
prevenção e
atendimento a doentes, os profissionais são treinados para
valorizar a
educação em saúde de todas as pessoas da família, com ênfase
para gestantes, crianças e idosos.
Embora a maioria
dos procedimentos médicos ocorram nos centros e postos de
Saúde, pacientes em estados mais graves são atendidos em casa.
No primeiro
semestre do Paidéia, as equipes realizaram uma média mensal de
2.890 visitas
domiciliares.
Em um ano, a
Secretaria de Saúde colocou em atividade 116 equipes do Paidéia
em todas as regiões da cidade. Até o final de 2002, a previsão
é de chegar a 150 equipes, atendendo a 150 mil famílias. A meta
é implantar 200 até o final de 2004. (CLP/AAN)
DIRETRIZES DO PAIDÉIA
· Promoção e prevenção na comunidade: o profissional de saúde
trabalha para
prevenir doenças e promover a saúde e a autonomia das pessoas
· Acolhimento e humanização: o profissional de saúde ouve o
cidadão para
identificar suas necessidades, acolher com respeito e responder
com
responsabilidade
· Atendimento clínico de qualidade: o profissional de saúde
atende cada
pessoa integralmente, respeitando especificidades e diferenças
· Participação da comunidade: o usuário é co-responsável
pelos serviços,
tanto no planejar, como no acompanhar e fiscalizar as ações